ESCOLA DO VINHO
Degustação Inclusiva, Desvendando o Vinho
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Degustação Inclusiva, Desvendando o Vinho
Mas na degustação às cegas, todos estão de olhos abertos, vendo e avaliando o vinho na sua aparência. Agora, feche os olhos, elimine o sentido da visão e pegue uma taça e tente analisar o vinho apenas com os seus outros sentidos. Esta é a degustação dos deficientes visuais.
Tenho muitos alunos e em um dos cursos recebi um participante deficiente visual, fiquei a aula toda incomodado por não o estar atendendo da forma adequada, uma vez que todas as informações eram expostas numa tela ou impressas em papel. Nem sabia, na ocasião, que deveria descrever as imagens para sua compreensão. Quando, em outra ocasião, tive outro aluno deficiente visual minha satisfação em ensinar, herdada de uma família de mestres, me obrigou a buscar um modelo de aula voltado para os deficientes visuais para poder dividir com eles a minha paixão por vinhos.
Atenção, isto é um spoiler! Estudei e me preparei para ensinar, mas no final considero que aprendi muito mais do que ensinei.
Procurei os especialistas, e os encontrei na Associação Brasiliense de Deficientes Visuais ABDV. Seu presidente, Flávio Luís, esclareceu que a ABDV é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, com mais de 1000 associados, mantida por doações, serviço voluntário e pela elaboração de cardápios em braille, obrigatórios por lei para restaurantes, bares e lanchonetes.
Os cardápios em braile são obrigatórios, mas poucos restaurantes os possuem, e os que atenderam a lei nunca os atualizam. O treinamento para garçons, maitres e sommeliers para atender os portadores de necessidades visuais hoje é inexistente. Colocam taças na mesa sem avisar. Numa mesa com vários DV se dirigem a um especificamente mas sem o tocar para identificar com quem falam. Com muito bom humor, muitos DV já me descreveram o verdadeiro pânico que geram para os garçons que os atendem.
A Coordenadora de Comunicação Social da ABDV, Denise Braga, já havia me alertado para o “preconceito do bem”, a vontade de ajudar que toma as pessoas quando o assunto é deficiência. E assim foi. Todos que tomaram conhecimento do projeto fizeram questão de colaborar. E foram muitos.
Há vários níveis de deficiência visual, tem os totalmente cegos, os que possuem percentuais de visão, os cegos de nascença, por doença ou acidente. Cada um tem um forma diferente de perceber o mundo. Quem não conheceu as cores não solicita esta informação.
Fui vendo uma certa poesia nesta situação e lembrei dos poetas cegos, desde Homero, passando pelo cearense Cego Aderaldo e chegando em Jorge Luis Borges, poeta, cego e amante do vinho, como comprova seu Soneto do Vinho.
E foi com Borges que abrimos a 1ª Degustação Inclusiva do Distrito Federal, Desvendando o Vinho, com a sua assertiva de que “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”. Em seguida William Cunha, vice-presidente da ABDV, leu, com a dificuldade da sua deficiência, o Soneto do Vinho, impresso em letras tamanho 48. Leu com emoção e emocionou a todos presentes e aos auxiliares voluntários, que agradeciam aos 15 degustadores a oportunidade de estar participando do evento. Quando “surgiu a valorosa, singular ideia de inventar a alegria?” pergunta Borges pela voz do William. E logo responde “com outonos de ouro a inventaram.”. E conclui “Vinho, ensina-me a arte de ver minha própria história. Como se esta já fora cinza na memória.”
A única diferença desta degustação para uma feita usualmente é que neste caso foi necessário o auxílio de uma pessoa para cada dois degustadores. São muitas taças, então foi preciso ter uma certa cautela. Mas a solução é fácil, bastava aos voluntários tocarem no ombro do degustador e perguntarem como deveriam proceder. Deu tudo certo.
Justino Bastos, transcritor braille da ABDV, preparou a ficha de degustação e a carta dos vinhos servidos em braile. Porém nem todos DV são habilitados em braille, assim realizei a leitura para que todos participassem com o mesmo nível de informação.
Como são muito bem-humorados iniciei logo falando todas aquelas mancadas que damos quando nos dirigimos a um DV, “olha aqui”, “estão vendo”, “veja só”, assim derrubei as apostas entre eles de quando seria a minha primeira escorregada.
Não era um curso de vinho, nem uma degustação técnica, era mais uma festa. Logo o vinho fez a sua mágica e a leveza e gargalhadas animadas dominaram. Se transformavam em realidade as palavras do poeta chileno Nicanor Parra. “Um cego com uma taça de vinho consegue exergar faíscas e labaredas. O coxo, de nascença, logo se põe a dançar.”
Com um largo sorriso a Denise Braga brincava, “Isso, sim, é uma verdadeira degustação às cegas.” Antes já havia recusado uma nova taça de vinho informando ao garçom que não podia beber porque era a motorista da vez.
O Diretor de Comunicação Social da ABDV Klaus Lacerda, era o degustador com mais experiência na mesa e me ajudava com dicas de quando se fazia necessária uma melhor explicação, afinal, nas minhas aulas, abuso de expressões não-verbais com gestos, linguagem corporal e expressões faciais.
Para minha surpresa foram se revelando talentos entre os participantes, os irmãos Leandro, Leonom e Leonardo Moreno, campeões paralímpicos de goal ball. Jogador do esporte desde os 7 anos de idade, o mais velho do trio, Leonardo, 31 anos, estava empolgado com a experiência. “É o meu primeiro contato com vinhos dessa qualidade. É uma experiência sensorial maravilhosa”, confessou o atleta.
A poeta Zozimeire Reis recitou uma das suas obras. Já a Aline Rolim protagonizou mais um momento de muita emoção quando todos se silenciaram para ouvi-la cantar “A Noite”, música da cantora Tiê. Ao final, a uma só voz, os convidados cantaram a música com Aline.
Ao final, William Cunha, vice-presidente da Associação fez um discurso emocionado sobre o encontro. “Iniciativas como essa abrem espaços e mostram nosso potencial. Pela primeira vez em um evento para deficientes visuais não estamos sendo tratados como coitadinhos, mas sim como os convidados principais. Muitas vezes deixamos de frequentar alguns lugares porque não há qualificação básica. É necessário que os restaurantes tenham cardápio em braile, menu ampliado (letras grandes), mas caso não tenham, é preciso que haja um atendimento humanizado, que os garçons perguntem como o deficiente quer ser tratado”, alertou o estudante de direito.
Esse evento é um ato de cidadania que nos ajuda a compreender que uma deficiência não é um obstáculo para a convivência e para uma vida plena, com realização e prazer. Mas o sucesso só poderá ser medido pelo resultado das suas consequências. Não poderá se encerrar numa glória efêmera. Minha ambição é que a Degustação de Vinhos Inclusiva sirva como ponto de partida para um projeto audacioso, com a pretensão atender grupos de deficientes visuais, físicos e auditivos em uma proporção muito maior nas próximas edições, afinal, numa visão mais comercial, todos são consumidores com desejos e direitos.
Finalizo com a mensagem que recebi da Denise Braga, que ela se deu ao trabalho de digitar, mesmo sendo totalmente cega. “Para mim, foi mais que um momento de descontração. Foi mais uma oportunidade que nós, pessoas com deficiência, tivemos de trocar experiências. Pessoas cegas, aprendendo muito sobre o mundo visual. Mas também, muito a ensinar desse nosso mundo de descobertas e superações. Aprender, sobre um assunto, que inicialmente as pessoas “acham”, que só, os ditos “normais” fazem… E ensinar, que apenas por falta de oportunidade, preparo da sociedade, informação, acessibilidade, e outros aspectos que nos fazem parecer em desvantagem, acabamos por ficar mais distantes de eventos sociais, culturais, etc…Desvendar o vinho, é tão saboroso quanto a liberdade de redescobrir o mundo!”
Ao final da noite até os que enxergavam viam faíscas e labaredas